Trechos de Mittermayer – 1834, tratado da prova em matéria criminal
Em toda a legislação a sentença criminal não é mais do que o corolário da decisão sobre o ponto do fato, pois que o legislador supõe previamente que a referida decisão emana da íntima convicção do juiz, da certeza por ele adquirida da verdade dos fatos, cuja existência serve de base à acusação. Por isso trata-se de cercar do maior número possível de garantias; é mister que ela compreenda os fatos sob o mais amplo ponto de vista, que as suas disposições sejam somente ditadas pela certeza; e quando todos os cidadãos acreditam ter a condenação recaído sobre o verdadeiro culpado, a pena adquire a sua mais completa eficácia. (Mittermayer – 1834, tratado da prova em matéria criminal – pg. 89).
Quanto mais as imagens transmitidas pelos sentidos estiverem em perfeita harmonia com as nossas idéias do possível, tanto mais nos inclinarmos a considerá-las como realidade. Pelo contrário, sempre que nossos sentidos forem impressionados por um fenômeno extraordinário e incompreensível, a dúvida se opera em nosso espírito, somos levados a não ver senão uma ilusão nestas imagens sensíveis. Quando vemos um homem apontar para outro uma arma de fogo, em uma distância em que a experiência nos dizia não poder a bala alcançar o objeto e fazê-lo cair morto, perguntamos a nós mesmos se o autor da morte foi aquele, com o tiro que disparou sobre a vítima, e não sabemos como conciliar o que vemos com o resultado das nossas experiências anteriores. (Mittermayer – 1834, tratado da prova em matéria criminal – pg. 132).
Quando as provas se apóiam na evidência material mediata, na confissão, no depoimento de testemunhas, não se pode afirmar ser essa evidência mediata que produz a certeza, mas antes as razões que militam no espírito do juiz no sentido de levá-lo a prestar credito às afirmações de terceiros, que vêem atestar que os fatos imputados caíram sob a observação dos seus sentidos. Por afirmar um indivíduo – eu vi A apunhalar B, o juiz só por isso não pode decidir a condenar; e se o faz, é principalmente porque considera a testemunha digna de fé, porque considera que ela foi espectadora do fato e acredita ter ela a firme vontade de dizer a verdade, porque o seu depoimento lhe parece ao mesmo tempo possível e verossímil, porque há concordância perfeita entre o seu depoimento, as circunstâncias materiais e os outros depoimentos prestados. O mesmo se deve dizer a respeito da confissão; se esta merece crédito, é por causa de uma multidão de considerações que encadeiam no espírito de juiz; e seria erro sustentar-se, neste caso e em outros, que a certeza só é produzida pela evidência material . (Mittermayer – 1834, tratado da prova em matéria criminal – pg. 134).
O depoimento da testemunha deve ser persistente; é mister que nos diversos interrogatórios as suas palavras sejam sempre as mesmas, sempre isentas de contradições ou de hesitações. Com efeito, aquele que observou exatamente deve sempre reproduzir na mesma linguagem o que viu; a mentira, ao contrário, vê-se involuntariamente pelas diferenças notáveis nos depoimentos feitos em diversas épocas sobre as mesmas circunstâncias; e nem pode deixar de ser assim. (Dr. C. J. A. Mittermayer – 1834, tratado da prova em matéria criminal – pg. 314).
Ao desenvolver os critérios de avaliação do testemunho relativamente ao sujeito, já havíamos mencionado o testemunho do ofendido como subjetivamente defeituoso, pela suspeita derivada dessa mesma qualidade de ofendido, na testemunha.
Ora, sempre sob a luz dos princípios gerais por nós desenvolvidos, passaremos a considerar em particular o testemunho do ofendido, tomando para análise tal suspeita, a ele inerente, para melhor determinar-lhe a natureza e o valor.
Passemos a considerar o testemunho do ofendido sob este aspecto restrito, porque ele não se especializa, distinguindo-se dos outros testemunhos, senão do ponto de vista do sujeito, e, mais particularmente da suspeita derivada da qualidade do ofendido, no sujeito; deste ponto de vista é preciso, portanto, considerar o testemunho do ofendido, quando se queria falar dele como testemunho especial.
Vimos que todos os defeitos subjetivos do testemunho só fazem suspeitar da veracidade da testemunha, fazendo supor facilmente que ele se engana, ou que ela queira enganar.
As duas espécies se reduzem, portanto, a todas as possíveis suspeitas derivadas da pessoa da testemunha; suspeitas de enganar e suspeitas de vontade de enganar. Para se formar, por isso, um conceito exato e completo dos defeitos do testemunho do ofendido, convém considerar este testemunho em relação a cada uma das duas espécies das suspeitas supracitadas.
Quanto à facilidade de engano, é indubitável que ver agredido o próprio direito perturba grandemente a consciência do homem, fazendo-o perder aquela serenidade, aquela calma decorrente da exata percepção das coisas. Todo crime faz nascer, portanto, no espírito do ofendido uma perturbação que, tornando difícil a exata percepção das coisas, possibilita os enganos. Isto, principalmente, quando se trata de crime consistente em violência contra as pessoas, ou acompanhado desta. Naquele que recebe um ferimento, ou mesmo uma pancada, na pessoa que sofre uma violência, ainda que simplesmente moral, a mente se constitui em tempestade; e não é por certo em tal estado de espírito que se pode ter a exata percepção das minúcias das coisas.
Se a perturbação de espírito é a máxima para os crimes contra pessoa, ela, se bem que em menor grau, verifica-se também, dentro dos devidos limites, para os crimes contra a propriedade, para tudo o que se refere à percepção simultânea ou sucessiva á consumação do crime.
Quem é despojado de uma coisa sua, se pode ter exatas e serenas percepções para depor sobre as materialidades peculiares ao objeto subtraído, pois anteriormente percebidas em período de calma, não pode ao contrário apresentar percepções igualmente serenas e exatas relativamente ao valor do objeto roubado. É que, consumado o furto, sabemos que o objeto do qual fomos despojados, pelo amor que temos as coisas que nos pertencem, apresenta-se-nos sempre com um valor superior ao real. Coisas que apreciamos pouquíssimo enquanto as possuímos, passamos a apreciar muitíssimo quando as perdemos; e isto não é exato somente em relação às coisas matérias: sabe-se que dos mortos queridos se exageram sempre os méritos, mesmo os que não se queriam reconhecer em vida. É uma fraqueza do coração humano, que se inclina a apreciar, mais do que o que se possui, e exageradamente, aquilo que se perdeu.
Nem as observações do ofendido apresentam grande garantia de exatidão quanto ao modo da consumação do crime contra a propriedade; a ele se misturam sempre o sentimento da violência do próprio direito, o qual tolhe a calma, e a conseqüente percepção exata dos pormenores das coisas.
Nem, por fim, se deve dar valor ilimitado às palavras de quem foi ofendido nos bens, quanto à designação do delinqüente. O grande desejo, natural em quem foi vítima de uma crime, de chegar à descoberta do réu, preocupando o espírito já perturbado pela ofensa sofrida, torna-o propenso para as suposições, fazendo aceitar como probabilidades simples dúvidas, e como certeza as probabilidades.
A perturbação natural do espírito do ofendido diante de qualquer delito, se bem que em medida diversa, segundo se trata de crimes contra a pessoa ou contra a propriedade, torna por vezes suscetíveis de erro aqueles reconhecimentos a que se costuma proceder quando o ofendido não conhece o delinqüente, senão por tê-lo visto cometer delito.. Em tais casos, o ofendido não tem outro critério para a determinação do delinqüente, senão a sua exterioridade material, percebida no momento do delito, a sua fisionomia, a idade aparente, a estatura, a sua corpulência e trajes. Todos compreendem que todas estas minúcias, por falta de calma nas observações, não podem ser exatamente percebidas no momento do delito, e por isso as semelhanças podem facilmente converter-se em identidade, aos olhos do ofendido, e o seu engano nos reconhecimentos pode arrastar a justiça penal a deploráveis erros. É menos difícil do que se crer, cair em engano, julgando sobre as semelhanças de pessoa e vestes; caem nele também pessoas estranhas ao crime, mesmo terceiros. Quem não se lembra do célebre fato do correio de Lião? O pobre e inocente Lesurque foi reconhecido como um dos assassinos, positivamente, pela testemunha Locroy di Mongeron, e morreu sobre o patíbulo, vítima de uma semelhança fatal.
Igual sorte teve o pobre Causac. Certa noite, quando Bellot estava para se deitar com sua mulher, foi agredido e ferido por um homem, que fugiu imediatamente, deixando nas mãos dos agredidos um tufo de cabelos arrancados da sua cabeça. O quarto estava tênuantemente iluminado, mas os agredidos declararam ter reconhecido Causac na pessoa e nos trajes, sendo que com ele tinham tido, pouco antes, uma acerba contenda. Causac foi preso, e os seus cabelos, desgraçadamente, eram semelhantes ao punhado fatal: foi julgado e morto no patíbulo. Seis meses depois é descoberta a sua inocência, pela confissão do verdadeiro delinqüente. (Nicola Framarino Dei Malatesta – A lógica das Provas em Matéria Criminal – Vol. II – C.V – pg. 116).
Até onde pode, extraordinariamente, chegar a semelhança pessoal, arrastando a erros que parecem incríveis, demonstra-o bem a célebre causa do falso Martin Guerra.
O verdadeiro Martim Guerra, casado em Antigues, em 1539, com Bertranda de Bols, um belo dia desapareceu, e não deu mais notícias. Girando pelo mundo, encontrou-se com um certo Arnaldo du Til, a quem contou todas as particularidades da sua vida e da sua família. Arnaldo, querendo aproveitar-se da sua semelhança com Martim, e o profundo conhecimento que tinha adquirido da sua vida e dos seus costumes, pensou em substituí-lo na família abandonada; e assim fez. Tudo se passou às mil maravilhas. Bertranda o acolheu por três anos no seu tálamo, tendo com ele três filhos. Os parentes e amigos tomaram-no por Martim Guerra, cujo papel, é necessário admitir-se, ele representou como artista insuperável. Mas eis que, depois de três anos, Bertranda descobre a impostura, e o denuncia-o à justiça de Rieux. Abrem-se os debates. Pois bem, quarenta testemunhas, iludidas pela semelhança, juraram ser aquele o verdadeiro Martim; e, vejam isto, entre elas se achavam quatro irmãos do verdadeiro Martim, criados com ele, e os maridos de outras duas irmãs! No entanto, eis que o verdadeiro, o pobre e errante Martim, volta para casa, e encontra o seu posto já tomado. Pois bem, o malfadado, conquanto autêntico Martim, devido à sua timidez em face da desenvoltura e da energia do outro, é tomado por sua vez como um impostor. E não foi sem dificuldades que se chegou a assentar a verdade dos fatos, reconhecendo-se a autenticidade do verdadeiro Martim, e condenando-se o impostor, que, de resto, o havia substituído à perfeição. Este, por fim, condenado à morte, confessou o seu embuste.
Para que o testemunho revele a verdade, não basta que o depoente não se engane e que não queira enganar; é preciso também que exprima a verdade de um modo correspondente a ela, manifestando-a tal que ela se apresenta no seu espírito. Há testemunhas que perceberam a verdade, que pretendem referi-la exatamente, e cujos depoimentos, no entanto, acabam por enganar, pela impropriedade e incerteza da sua linguagem; a afirmação sincera de fatos verdadeiros se converte, assim, pelos seus efeitos, em um falso testemunho. A linguagem, portanto, enquanto é direta expressão do pensamento, segundo mostra exprimi-lo com maior ou menor precisão e clareza, realça ou abaixa o valor probatório do testemunho. É natural que se deva apreciar mais um testemunho feito em linguagem precisa, do que um testemunho feito com linguagem que se preste ao engano. Eis, pois, uma primeira exterioridade testemunhal que é preciso levar em conta para a avaliação do testemunho; a linguagem como direta expressão do pensamento. (Nicola Framarino Dei Malatesta – A lógica das Provas em Matéria Criminal – Vol. II – pg.66).
Quando no texto de vários testemunhos se nota cundem praemeditatum sermonem, esta identidade não natural de forma fará supor uma identidade de inspiração; um conluio anterior para estarem de acordo na afirmação de um fato. É esta uma outra causa formal de descrédito, que pode em certos casos até mesmo anular o valor probatório dos testemunhos, pois que os conluios preliminares só se sucedem por meio de acórdão das testemunhas mentirosas. As verdadeiras não precisam de conluio; são postas de acordo pela própria verdade. (Nicola Framarino Dei Malatesta – A lógica das Provas em Matéria Criminal – Vol. II – pg.68).
A animosidade, a afetação, a premeditada identidade do depoimento são, pois, consideradas como três causas formais de diminuição de fé nos testemunhos, assim como a equanimidade, a naturalidade, e a não premeditação do depoimento, são consideradas como três causas formais de aumento de fé. (Nicola Framarino Dei Malatesta – A lógica das Provas em Matéria Criminal – Vol. II – pg.68).
Dado um testemunho perfeito relativamente ao sujeito, à forma e ao conteúdo, ele terá sempre uma eficácia decisiva na formação do convencimento; e essa eficácia, quanto à certeza dos fatos asseverados, comunicar-se-á do espírito da testemunha ao juiz. Portanto, a grande eficácia probatória de um testemunho se apóia na hipótese de certeza dos fatos, na testemunha; certeza que resolve objetivamente em um conteúdo testemunhal afirmativo. Quanto mais distante se apresenta a dúvida da afirmação da testemunha, tanto maior força probatória adquire o testemunho; e vice-versa, quanto mais dubitativas parecem as declarações da testemunhas, tanto mais diminui a sua força probatória. É claro, sem necessidade de comentário: cem “parece-me” não equivalem nunca a um “é assim”. Eis, portanto, um outro critério objetivo para a avaliação do testemunho, a natureza afirmativa ou dubitativa do seu conteúdo. (Nicola Framarino Dei Malatesta – A lógica das Provas em Matéria Criminal – Vol. II – pg.89).
Sempre que o conteúdo do testemunho inclui uma contradição nas suas partes, ela perde logicamente o valor probatório. Perde valor no todo, se a contradição é sobre o fato principal, de modo que não seja possível a hipóteses de um defeito momentâneo de memória ou de atenção, corrigindo em seguida; como quando a testemunha, depois de haver dito Tício matou Caio com um golpe de faca, termina dizendo que o matou com um tiro de pistola.z. (Nicola Framarino Dei Malatesta – A lógica das Provas em Matéria Criminal – Vol. II – pg.89).
Em venerando acórdão relatado pelo eminente desembargador Joaquim de Sylos Cintra, do Tribunal de justiça de São Paulo, ficou acentuada a necessidade, diante de depoimentos contraditórios, de submetê-los a análise, para descobrir a verdade, em vez de absolver-se desde logo o acusado. Não bastam testemunhas contraditórias para levar o juiz a pronunciar o non liquet. Por isso, na apreciação da prova pelo livre convencimento, deve o juiz submeter os elementos probatórios a uma cuidadosa pesquisa, orientada pelos princípios da psicologia judiciária, pois, guiadas pela tendência afetiva no processo de percepção, algumas vezes as testemunhas vêem as coisas como queriam que elas fossem. (Revista dos Tribunais, 166/82).